Dalla Apologia Dei Dialogi

Estrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativa
 

Uma apresentação da obra de Sperone Speroni pelo filósofo e colunista Alcir Pécora.

No século 16, nenhum gênero discursivo parecia mais favorável ao conhecimento do belo e do verdadeiro como o “diálogo” –, como evidencia o Dalla Apologia dei Dialogi.

[Uma defesa dos diálogos] (1574), de Sperone Speroni (Pádua, 1500-1588), do qual faço aqui uma breve apresentação.



Para Speroni, o diálogo é uma forma discursiva aparentada com a comédia antiga, que comporta duas ou mais personagens em cena, como pessoas que conversam, nem todas boas, mas todas servindo a um bom fim. Como na comédia, as personagens do diálogo devem ser relativas a “tipos” reconhecíveis da cidade, como “servos maliciosos”, “enamorados sem juízo”, “parasitas”, “aduladores”, “jovens/velhos de maus costumes”, “cortesãs”, cada um falando segundo o que é próprio de seu caráter e posição. Se falasse de outra maneira, e não segundo o parecer vicioso adequado ao tipo, a personagem faria malo seu ofício e o teatro desagradaria, sendo ineficaz em relação a seu fim virtuoso.

Vale dizer, em diálogos bem feitos os interlocutores argumentam de acordo com o costume e a vida que cada um deles representa, e não com o que pensa o seu autor. Platão, por exemplo, não pode ser culpado das más coisas ditas pelos interlocutores criados por seus diálogos, pois o louvor ou a crítica do que é dito apenas podem ser pronunciados após o conhecimento do sentido do todo, e não da impressão causada por apenas uma das vozes. O diálogo, portanto, obriga o leitor a aprender a “paciência de escutar”. E o mesmo vale para a sua composição: um diálogo que chega depressa demais ao seu desfecho acaba fracassando por falta de contradição ou de diversidade na escolha das suas personagens.

Para expor a forma como o diálogo atende a seu fim justo, Speroni propõe a sua similitude com a retórica, entendida como “artifício civil” que sabe tratar igualmente as causas honestas e as que lhe são contrárias. Neste aspecto, o diálogo guarda semelhanças com outras artes que também operam com contrários, como a medicina, que ensina o que cura e o que envenena, pois embora o propósito seja curar, é necessário o conhecimento do veneno para a fabricação do antídoto.

Segundo Speroni, há dois modos principais de escrever diálogos. O primeiro tem como modelo os diálogos atribuídos a Aristóteles, feitos à maneira da ciência e que visam ao ensino, cabendo nele o uso de silogismos para tratar a matéria. O seu autor age como um “administrador” cujo fim não é a diversão, mas a alimentação dos moradores e a conservação da casa. A utilidade é, por assim dizer, o único prazer que deseja e a sua maneira de escrever é geralmente áspera. No segundo modo, que é o que lhe interessa defender, o diálogo “caminha pelo jardim e pela vinha” e delicia pela variedade e novidade. Neste modelo originalmente platônico, o autor do diálogo silencia a própria voz e a preenche com vários nomes, costumes e argumentos, em coisas altas e elegantes, ou, ao contrário, vis e baixas.

Essa distinção se desdobra em dois modos de argumentar: há um “modo referido”, que ocorre quando o autor conduz o diálogo e apresenta as diferentes falas (“fulano disse”; “sicrano responde”, à maneira de Xenofonte ou de Cícero); neste caso, assemelha-se mais ao épico, que ao cômico, com seleção apenas das falas nobres e notáveis. E há um “modo imitativo”, que usa argumentos alternados, não introduzidos, nem interrompidos pelo autor, no qual as personagens aparecem como que falando por si mesmas, à maneira da representação dramática (procedimento adotado por Platão, Luciano, Plutarco etc.). Este modo vale-se dos “privilégios da poesia” e diverte privadamente na leitura, da mesma maneira que a comédia na representação pública.

Segundo Speroni, as “turbulências” da matéria amorosa tampouco são indignas do diálogo, assim como não o são as personagens de servos, meretrizes, rufiões, parasitas, soldados ou pedagogos. Todas podem ser prazerosas e úteis na comédia, desde que suas palavras imitem convenientemente os costumes inconvenientes. Nesta perspectiva, o diálogo é como “pintura falante”, pois, desde que “tirados pelo natural”, um tolo, um ímpio, um enamorado, um adulador, algum sofista arrogante, todos podem ser agradavelmente descritos com nomes e verbos, da mesma maneira que as cores o fazem na pintura.

Enfim, é tão lícito tratar de qualquer matéria entre as personagens do diálogo, quanto ao poeta e ao pintor representá- -la. Desde que haja busca da doutrina sã, nada obsta a que haja também injúria, desde que decorosa em relação à personagem portadora de vícios. Para Speroni, não é distinto o modelo oferecido pelas Escrituras, pois as palavras de Cristo não dialogam apenas consigo, mas também com os que se querem seus amigos e ainda com seus inimigos declarados, sendo que, em cada caso, fala-se segundo a própria condição e não todos santamente.

A semelhança do diálogo com a comédia vai além: se, nesta, agrada o engano feito ao enganador por meio da conversa ambígua, da ironia, da astúcia mascarada de tolice, assim também, no diálogo, vale o espírito gracioso, a abundância de recursos, a novidade dos conceitos e das palavras. Aí reside, para ele, a graça da personagem de Sócrates, que serve a Platão e a Xenofonte, pois ele não peja de afirmar nada saber, de se comparar a uma parteira (que faz parir o conhecimento que não sabia ter) ou de igualar o amor a um rufião, como intermediário do desejo. Sócrates encanta ao ironizar os sofistas, fazendo crer que os honra, ou ainda quando revela a grandeza de seu ânimo, ao escolher a morte injusta, da qual, se quisesse, poderia fugir.

Da mesma maneira, personagens ignorantes ou que afetam ignorância, quando introduzidas num diálogo, tendem a agradar mais do que as doutas e não são menos úteis do que elas. A rigor, tampouco o autor precisa ser douto para agradar, embora seja imprescindível que possua suficiente engenho para compor bem as suas personagens dentro de um “decoro indecoroso”. Isto significa que uma personagem ignorante pode ser agradável na imitação dos argumentos, tanto pelo contraste produzido com as demais, como porque o ignorante é imagem verossímil do homem em geral, cujo intelecto e desejo instintivo de saber estão presos à fraqueza de sua condição, necessitando buscar auxílio na “companhia” dos outros.

Em relação à companhia, Speroni também estabelece uma distinção: pode-se concebê-la à imagem do magistério aristotélico, com alunos que acatam os argumentos do mais sábio, ou, diversamente, com um grupo de pessoas “em parlamento”, sendo a contenda o objeto da imitação e não o ensino de um único sábio. Neste último caso, a iluminação do saber dá-se como ocorre no movimento de fricção para obter fogo: contraste e contrariedade são exigidos para o êxito da operação. Como no magistério, tal saber demanda estudo, mas exige, além disso, engenho, jogo, aplicação de ornatos belos e distintos.

Assim, o diálogo é definido menos como ciência, do que como poesia, e demanda o tipo de “furor celestial” descrito no Íon. Espera-se que a sua escrita seja arguta porque, ao não “encarnar” dramaticamente o que escreve (como faz a comédia pura), nem descrever logicamente a essência (como faz a ciência pura), tudo o que pode fazer é ir “em torno, bailando”, como uma criança que salta e dança sem ainda saber andar. O vaguear (vaneggiar) do diálogo, sem apressar a verdade, não é caminho ímpio ou desonesto, como não são más as núpcias de Canaã, ao qual Cristo comparece, embora haja vários convidados entretidos em bailes e cantos. Daí a conclusão de Speroni de que, nos diálogos, maior é o proveito que se tira dos espinhos que das rosas. No confronto das posições reside a ocasião do reto arbítrio, de tal modo que um saber que não refuta ou elege não pode ser real.

 

 


Fonte: Revista Cult

 

 

Imprimir