A Vingança de Tixasinece

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É dito que, antes do início, a deusa Dana flutuava no vazio escuro e frio que era ela sofrendo as dores de sua inexistência. Sua boca, seca e roxa, gritava por ajuda, mas não havia ninguém além dela própria que pudesse ouvir seus pedidos por socorro. Seus dedos, frágeis e azulados, tentavam agarrar o nada ao redor e do qual era feita. Com ele talvez fosse capaz de criar algo quente e luminoso que a tirasse de sua condição infeliz, no entanto a matéria do vazio sempre escapava de seus punhos tal como a água escorre de mãos mortais.

O frio ainda ocupava todo o vácuo quando, certa vez, antes do próprio tempo, a deusa abraçou a si mesma tentando se proteger da baixíssima temperatura. Seu esforço, porém, era inútil. As suas mãos, assim como seus braços e todo o seu corpo, eram tão frios como o nada que era ela e a rodeava. Não havia como escapar dele.

Ainda assim, porque mais nada poderia ser feito, Dana continuou a apertar a si mesma. O frio era um inimigo implacável, mas ela também o era, então a deusa continuou a abraçar-se cada vez mais forte, cada vez mais apertado, até que suas costelas cederam sob a pressão de seus poderosos braços.

O estalo de seus ossos seria capaz de alarmar a qualquer um que o escutasse, mas ninguém o escutou e o frio ainda era onipresente. Ela, então, ainda que sofresse com a dor das fraturas, continuou a apertar a si mesma até que a pele e os órgãos rasgaram. Naquele instante, antes do tempo, Dana tornou-se duas.

Ainda assim, ela era nada frente ao frio impassível. As duas irmãs, ao se conhecerem, não se abraçaram por afeto, mas por pura agonia. O frio ainda as afligia e tudo o que podiam ou sabiam fazer era abraçar-se. Então, assim elas fizeram, com a intensidade de seu desespero.

Novos estalos alcançaram seus ouvidos, mas elas não se soltaram. O temor de serem deixadas sozinhas no vácuo frio era grande demais, de forma que a fratura de suas costelas serviu apenas para que elas intensificassem a pressão de seu abraço. E, assim, elas eram quatro irmãs e, logo, eram oito, dezesseis, trinta e dois… Até que haviam tantas que era impossível para qualquer mortal contar.

Frente a inutilidade de seus esforços, elas mudaram de estratégia. Elas sabiam que eram incapazes de impedir o sofrimento de todas, mas talvez fossem capazes de salvar uma. Com o novo plano formado, as irmãs infinitas se aproximaram sobre a eleita pelo grupo, a quem chamavam Dana, pois julgavam ser ela a original. No entanto, não importava se ela realmente fosse a primeira deusa. Tudo o que queriam era vencer ao frio, pelo menos uma vez.

As incontáveis pressionaram aquela que chamaram Dana. Haviam tantas delas que nenhum pedaço de seu corpo ficou descoberto. No entanto, elas ainda conseguiam sentir o frio da irmã, de forma que elas a pressionaram ainda mais forte.

A pressão das inumeráveis sobre um só corpo era tão grande que Dana sentia que logo cederia e daria lugar a duas novas deusas, mas não havia espaço para isso. Seu corpo era pressionado de todos os lados enquanto ela ouvia o estalar de seus ossos. Os primeiros a ceder foram os seus membros. Braços e pernas quebraram e quase fugiram da pressão das deusas, mas elas logo os coletaram e os puseram de volta sob suas mãos. Em seguida, as costelas e o crânio se despedaçaram. Dana, desesperada, quis gritar para que elas parassem o que faziam e a deixasse sofrer no frio, mas seu maxilar já não funcionava e, mesmo que funcionasse, o som não se propagaria no vácuo. Os últimos a quebrarem foram os seus dentes. Esses, no entanto, foram pulverizados depois de tantas dores, que Dana já era incapaz de sentir qualquer coisa.

Conforme o corpo cedia e se deformava sob a pressão, ela se tornava cada vez menor. Assim, muitas deusas já não eram capazes de tocá-lo, pois simplesmente não havia espaço. Uma a uma, elas se afastaram enquanto tentavam observar o que restou da eleita.

Apenas três delas ainda pressionavam a irmã quando o inimaginável aconteceu: o corpo emanou calor. As três se entreolharam com espanto conforme a fisionomia delas se alterava diante de seus olhos. Os lábios roxos se tornaram rosados, os dedos clarearam e seus corpos, antes contorcidos e encolhidos sob a dor do frio, se esticaram com a dignidade dos sãos.

Outras deusas notaram a mudança e correram em sua direção para entender o que acontecia. As três, no entanto, temiam que elas pudessem tomar o calor de suas mãos e fugiram. Traídas, as infinitas irmãs correram em seu encalço e espalharam uma para outra a novidade:

— Nós vencemos o frio! — elas comunicaram.

O poder daquela constatação alimentou a vontade de cada uma delas de alcançar as traidoras e elas correram o mais rápido que suas pernas geladas eram capazes. Uma delas era mais rápida que todas as outras e as alcançou sem grandes esforços. Ela agarrou um dos braços das avarentas e o puxou com tanta força que o corpo escapou das mãos das egoístas, dando a ela a oportunidade de tomá-lo e escondê-lo em seu ventre.

Dana, por sua vez, estava farta de ser comprimida e ansiava pelo amplo espaço do nada do qual fugira. Assim, ela chutou o ventre que a aprisionava repetidas vezes até que o útero se desprendeu do corpo e ela, finalmente, estava livre. Ao sair, ela era outra. Sua pele dourada era luminosa e afastava todo o frio ao redor. Ao vê-la, as incontáveis logo notaram que aquela já não era uma de suas irmãs e, com grande choque, a renomearam aos gritos. A partir daquele momento, ela seria Tixasinece, a deusa viva.

As três irmãs que tentaram guardá-la apenas para elas próprias, no entanto, temeram a punição que logo viria e tentaram fugir para longe de sua luz, no interior frio e escuro do nada. A deusa ágil, por sua vez, ainda que ferida, as alcançou novamente e as levou de volta para Tixasinece. Irada com as suas antigas irmãs, ela as atacou com tanta fúria que as deformou permanentemente, de forma que suas irmãs as renomearam Uralta, Garlura e Dindoprefuda. A violência, no entanto, não fora castigo suficiente para aplacar Tixasinece, que as aprisionou em seu próprio ventre.

Era a vez da irmã ágil, e ela sabia disso. Ao contrário de Uralta, Garlura e Dindoprefuda, ela decidiu não fugir de Tixasinece e apenas esperou pelo seu castigo. A deusa luminosa, no entanto, não se impressionou com aquela atitude e aplicou o castigo que julgou justo. Com o braço luminoso e violento, ela agarrou o órgão que antes fora o seu cárcere e o alterou para sempre com um puxão. A partir daquele momento, sua antiga irmã passou a ser conhecido como Ptemo e ele foi aprisionado junto às irmãs. Irado, ele jurou nunca mais parar de correr.

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