Clarice da Boca pra Fora

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Em comemoração aos seus 92 anos de nascimento, releia matéria sobre Clarice Lispector como entrevistadora.

Debruçar-se sobre a obra de Clarice Lispector é se defrontar com um trabalho plural, que não apenas se limita às páginas dos livros, mas se inscreve nos espaços fixos de jornais e revistas.

Essa versatilidade se deve ao outro ofício da escritora: o de jornalista. Antes mesmo de publicar seu livro de estreia, Perto do Coração Selvagem, ela já havia sido registrada profissionalmente como repórter pelo jornal A Noite, em 1943.

Sua produção na área é vasta, abrange desde reportagens e crônicas até colunas femininas. Entre as inúmeras colaborações para jornais e revistas, sobressai-se um determinado tipo de material que, em decorrência do caráter híbrido, difere de seus demais textos.

Trata-se das 83 entrevistas realizadas para as revistas Manchete – na seção “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, com 59 entrevistas entre maio de 1968 e outubro de 1969 – e Fatos e Fotos/Gente, com 24 entrevistas realizadas entre dezembro de 1976 e outubro de 1977.

A singularidade das entrevistas reside, sobretudo, na forma: o diálogo. Enquanto nos demais textos Clarice privilegia os monólogos interiores e as digressões, nas entrevistas o texto se inscreve pelas falas do entrevistador e do entrevistado.

Convém salientar que Tom Wolfe, ao atacar os romancistas da década de 1940 e 1950 e enaltecer o New Journalism, priorizava justamente o uso do diálogo: “Os escritores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro algo que desde então tem sido demonstrado em estudos acadêmicos especificamente, que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro recurso. Ele também estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso. […] Os jornalistas trabalhavam o diálogo em sua mais plena e mais completamente reveladora forma no mesmo momento em que os romancistas o eliminavam, usando o diálogo de maneira cada vez mais crítica, estranha e curiosamente abstrata.”

Com efeito, nas entrevistas, Clarice trabalha com o diálogo na sua mais plena e reveladora forma; contudo, é possível observar que a autora de Água Viva aproxima- se em muitos aspectos da entrevistadora, nas revistas da Bloch Editores. Fica evidente nas entrevistas a escritura de uma romancista da década de 1940, em detrimento da jornalista da década de 1960.

Logo, antes de se analisar a entrevistadora, há que se compreender a escritora jornalista, ou melhor, o quanto existe de jornalista na escritora.

O leitor de jornal

Em 29 de julho de 1972 sai no Jornal do Brasil sua crônica “Escrever para jornal e escrever livro”, onde escreve: “Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. Guardadíssimas as devidas e significativas proporções, era isto o que eu ambicionaria para mim também, se tivesse fôlego. […] Outro problema: num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém. Ou mesmo sem compromisso nenhum. […] E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque ‘jornal é para ser entendido’. Não há dúvida, porém, de que eu valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que escrevo para jornais – isso sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo.”

Nota-se aqui que a cronista controverte seu ofício como jornalista, sobretudo quando atribui ao público o obstáculo à escrita, afinal o jornal é para ser entendido, e o leitor de jornal está habituado a ler sem dificuldade o jornal.

De fato, é de se questionar como a escritora que escreve para “leitores de alma já formada” – em suas próprias palavras, no prefácio de A Paixão Segundo G.H. – também escreve ao leitor de jornal sem deixar de amá-lo.

Por outro lado, é inegável que a escritora, quando da publicação da crônica, já mantenha um diálogo duradouro, de quase três décadas, com o tal leitor de jornal.

Como já se disse, antes de ter seu primeiro livro publicado, ela já trabalhava como jornalista para A Noite, seguindo os passos de muitos de seus colegas escritores.

É interessante ressaltar que, por muito tempo, foi reservado às primeiras páginas dos jornais o exercício da narrativa ficcional, aproximando, assim, jornalismo e literatura.

Boa parte da obra de Balzac, Alexandre Dumas, Machado de Assis, entre outros célebres escritores do século 19, foi publicada inicialmente em jornal diário sob o formato de romances seriados – os folhetins, como os tornou conhecidos Émile de Girardin e seu ex-sócio, Dutacq, após a revolução francesa de 1830.

Mas, quando inicia sua carreira como jornalista, no começo da década de 1940, Clarice se depara com uma realidade diferente daquela de Aluísio Azevedo e José de Alencar.

Com a crescente industrialização, passou a ser exigido do homem de letras que, em vez de ficção, escrevesse reportagens, fizesse entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas e chefiasse redações.

Além disso, alguns anos após seu início na redação de um jornal, ela presencia outras relevantes mudanças no jornalismo brasileiro: a importação de técnicas jornalísticas norte-americanas em meados da década de 1940 e, por conseguinte, o lançamento do primeiro manual de redação, em 1950, pelo Diário Carioca.

Contra esse tipo de jornalismo, Nelson Rodrigues escreve a crônica “Os idiotas da objetividade”, em que vitupera: “Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos”.

Todavia, em nenhum dos textos jornalísticos, nem mesmo nas primeiras reportagens, Clarice deixa de se emocionar com o leitor. Tanto nas crônicas quanto nas colunas femininas, ainda que sob pseudônimos, escreve para um leitor que admite amar, mesmo que destituído de comunicação profunda.

Tal escrita molda igualmente as entrevistas que realizou.

“Sou curiosa”

“Gosto de pedir entrevista – sou curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me deformam”, escreveu certa vez. Sua curiosidade rendeu interessantes e peculiares diálogos nas revistas Manchete e Fatos e Fotos/Gente.

Em entrevista concedida à pesquisadora Aparecida Maria Nunes, pioneira nos estudos sobre a Clarice jornalista, Zevi Guivelder, chefe de redação da Manchete durante os anos em que a escritora colaborou para a revista, lembra que ela “não tinha cabeça jornalística“, que não era e nunca havia sido jornalista, não tinha o “enfoque jornalístico das coisas”.

De fato, não há enfoque jornalístico nas perguntas inusitadas, como “O que é o amor?”, “Qual a coisa mais importante do mundo?”, “Qual a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?”, recorrentes em suas entrevistas.

Apesar de seguir o formato padrão estipulado pelas duas revistas, no estilo pingue-pongue, seus diálogos se diferenciavam das demais entrevistas. Dos seus entrevistados, desde a cantora Maysa ao campeão de caça submarina Bruno Hermany, ela explora o ser humano, misterioso para si mesmo, e não mais a celebridade, rentável aos periódicos.

A entrevista com o primeiro figurino do país, Tereza Souza Campos, denota o tom dos diálogos, mormente quando lhe é perguntado “O que você é?”, ao que Clarice escreve: “Ela ri, repete: ‘o que é que eu sou?’. Longuíssimo tempo se passa: a pergunta, além de inesperada, é realmente difícil de responder. Sobretudo se a pessoa mergulhar dentro de si para encontrar a resposta. Parece que isso aconteceu com Tereza: seu olhar tomou-se profundo e, embora de olhos abertos, eles estavam virados para dentro”.

À cantora Maysa, Clarice pede uma autodefinição: “Como é que você define Maísa?”. E a cantora responde de pronto: “Uma pessoa essencialmente boa de coração, bastante insegura, mas já a caminho do encontro. Nunca fiz meu autorretrato”.

A Clarice, o físico Mário Schenberg procura se acertar com algo que toque a ideia fugidia do amor: “É uma dessas coisas que não se pode explicar em palavras. O amor não é puramente emocional. É mais profundo do que isso. Acho que o sentimento do dever é uma das formas mais altas de amor porque é uma das coisas que mais nos ligam uns aos outros”, responde por fim, ao que a entrevistadora observa: “Ele fechara os olhos enquanto falava e continuou por uns instantes de olhos fechados. A impressão que dá é de que, a cada pergunta, ele se consulta antes”.

Ela induz o entrevistado a “olhar para dentro”, a aprofundar-se no próprio ser, exigindo um maior contato consigo mesmo. Se na maiêutica socrática a meta é atingir a verdade inata ao ser, as perguntas formuladas por ela, por sua vez, conduzem seu interlocutor a sua própria subjetividade, exigindo dele uma reflexão mais profunda sobre si próprio. Por meio do diálogo, alcança-se a “a terceira perna”.

É imperativo assinalar a importância das entrevistas diagramadas nas revistas, pois revelam muito mais dos diálogos do que aquelas editadas nos livros Entrevistas/Clarice Lispector e De Corpo Inteiro. Dos erros de edição (que muitas vezes indicavam as respostas dos entrevistados como perguntas da entrevistadora, a confundir o sujeito da fala) à grafia anterior à reforma ortográfica de 1971, passando pelos erros cometidos pela própria Clarice Lispector e pela diagramação da página (a disposição da foto do entrevistado e do texto), todos são elementos bastante enriquecedores.

Além disso, há algumas entrevistas muito interessantes que se mantêm inéditas, como a realizada com a cantora Maysa, publicada na seção “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”, da revista Manchete, no dia 27 de setembro de 1969. Leia abaixo alguns trechos saborosos.

A cantora saída das cinzas


“Maísa – Eis o nome de uma mulher gata muito bela, dona de uma voz rara e de dons artísticos também raros. É menos felina do que parece nos retratos e muito mais dada e simpática. Mas, sobretudo, Maísa – uma mulher sofrida e corajosa, que encara os próprios erros – é um símbolo de ressurreição. […] Quem já se ergueu várias vezes das cinzas sabe como é, ao mesmo tempo, difícil e possível [a] reconstrução. Este é um diálogo antideclínio: é cheio de perspectivas.

[…]

– Você já foi analisada?

– Comecei por três vezes, mas descobri que estava em mim mesma a resposta.

– Como é que você define Maísa?

– Uma pessoa essencialmente boa de coração, bastante insegura, mas já a caminho do encontro. Nunca fiz meu autorretrato.

– De onde vem essa insegurança?

– Virá, talvez, da brusca mudança no tempo, desde que eu nasci até hoje. Houve tantos tabus que hoje não existem mais e isso me criou essa insegurança. Quanto a tudo. Como, por exemplo, conviver com as demais pessoas fora do meu círculo de família. Mas não tenho nenhuma insegurança artística. Inclusive, acredito que eu esteja em uma fase muito boa de busca.

[…]

– Cada noite, na hora do seu show, você se sente inspirada para cantar ou já fez disso um hábito sereno?

– Toda noite para mim é uma primeira vez, mesmo que isso pareça lugar comum. Sofro uma barbaridade antes de entrar em cena. Depois é como se tivesse nascido outra vez.

– Que conselho você daria a uma jovem que caísse na depressão como você caiu? Qual é o melhor meio de sair dela?

– Acho conselho uma coisa muito perigosa. Eu não pedi nem aceitei nenhum. De qualquer modo, acredito que a humildade seja muito importante. Um dos meios de sair da depressão é não achar que o próprio problema seja o pior de todos.

[…]

– Maísa, apesar de você responder a tudo o que lhe perguntei, acho você uma pessoa reservada.

– Eu acho que não.

[…]

Tomamos um café e conversamos.

– Talvez, Clarice, você tenha me achado reservada ou intimidada porque era muita a vontade e a curiosidade que eu tinha em conhecer você. Também leio sempre os seus diálogos e me senti muito honrada por ser uma de suas entrevistadas.

Continuamos a conversa e fiquei sabendo, por exemplo, que Maísa é ótima dona-de-casa, gostando de lidar com tudo o que se refere ao lar, à cozinha, à arrumação. Como se vê, a Maísa real é diferente da Maísa mito. E ganha muito com a aproximação.”

O padre e a ciência


O diálogo realizado com o Padre Quevedo, publicado na revista Fatos e Fotos/Gente em 2 de maio de 1977, é igualmente intrigante, como indicam os trechos a seguir: “Para mim, a ideia de entrevistar um padre pareceu-me coisa difícil. Mas logo concluí que, atualmente, os padres, em sua maioria, se encontram a par dos problemas do nosso tempo. E como! Portanto, lá me fui, rumo ao Retiro dos Padres, nos arredores de uma das favelas mais populosas e famosas do Rio, a dramática Rocinha, no topo da Gávea. No Retiro dos Padres, até eu gostaria de me retirar: o silêncio é tão grande, tão cheio de natureza muda que, pelo menos, me curaria da poluição sonora. Esperei cerca de uma hora e meia porque Padre Quevedo estava em reunião. […] Perguntei-lhe como chegara a se interessar pela parapsicologia:

– Eu tinha doze anos quando fui levado a me interessar pelo espiritismo e pela magia. Quanto ao espiritismo, meu interesse maior se relacionava com a sua fenomenologia. Quanto à doutrina, não me parecia lógica a interpretação espírita dos fenômenos quando se tratava de pura mágica. Posteriormente meu interesse cresceu e completou-se com o estudo dessa ciência na universidade.

– Até que ponto a parapsicologia pode ser considerada uma ciência?

– Foi reconhecida como ciência universitária em 1953, no Congresso Internacional da Universidade Real de Utrecht, Holanda. Desde 1934 fazem-se pesquisas em laboratórios universitários. Em 1882 já se fundavam centros de pesquisa, sob a responsabilidade dos professores universitários. Em 1970, a Unesco e a Sociedade Internacional de Parapsicologia a reconheceram como a ciência mais humana dentre as outras.


[…]

– Como teriam sido encarados os parapsicólogos há cem anos?

– Há cem anos, as interpretações científicas de hoje teriam causado escândalos e, quanto aos parapsicologistas, teriam terminado na fogueira.

[…]

– Agora vou lhe fazer uma pergunta delicada (ou atrevida): alguns fenômenos ocorridos entre os santos da Igreja Católica podem ser pura parapsicologia?

– Claro. Por exemplo, as vozes que Joana D’Arc ouvia. Mas uma coisa é, por exemplo, a cura de uma paralisia funcional e a ressurreição de um morto. É natural a levitação a dois ou cinco metros, mas seria um milagre uma ascensão por cima das nuvens, etc.

Interrompo por um instante a entrevista para dizer que, do interior do branco e vasto edifício do Retiro dos Padres, ouvi de repente belíssimas vozes humanas em canto gregoriano. Arrepiei-me toda, não sou católica, sou apenas sensível.

[…]

– Eu, uma simples mulher, poderia provocar estados parapsicológicos?

– Como qualquer pessoa, eventualmente.”

O mundo submerso


Na última entrevista, realizada para a revista Manchete do dia 25 de outubro de 1969, com o campeão de caça submarina Bruno Hermany, há um dado no mínimo curioso: na fotografia, é bem provável que a estante de livros frente a qual o entrevistado posa para a câmera seja de Clarice Lispector.

“Pelo menos no campo dos esportes não é preciso apresentar Bruno Hermany, campeão mundial de caça submarina. Ele é admirado por todos, mesmo pelos leigos, e estimula os aficionados. O fato de que mantém sempre um padrão ao mergulhar, em quaisquer mares, também é um dos fatores que o levaram ao estrelato internacional. Bruno Hermany é um mestre no mundo submerso, desde o mergulho até o tiro e, antes deste, na procura do peixe, no cálculo de seu tamanho e peso, no estudo de suas reações.

Antes de ser caçador de mergulho, foi campeão de natação com grande facilidade. […] Também passou pela esgrima, tiro e corrida. […] No entanto, tudo isso era apenas um preâmbulo para a sua grande paixão: o silêncio do mundo submerso (que, como se verá, não é silencioso). É um esporte, como escreveu uma vez Yllen Kerr, sem arquibancada, sem o estímulo de aplausos. Das águas do mar, Bruno reina em atividade silenciosa.

– Como é que nasceu em você a escolha pela caça submarina?

– Por acaso, ou talvez pelo fato de viver perto do mar. Morava em Ipanema, perto do Arpoador. E a curiosidade vai puxando a gente para o fundo. Daí a mergulhar e a caçar, é uma pequena distância.

[…]

– Você é carioca?

– Sou paulista de nascimento, mas desde garoto morei no Rio. Tenho trinta e seis anos de idade. Escute, eu tinha vontade de lhe fazer uma pergunta: sendo você de um campo claramente intelectual, como se lembrou de entrevistar um homem do esporte?

– Todas as pessoas são interessantes, em maior ou menor grau. Mas uma personalidade de atleta grego é um achado. Além do mais, embora em campos diferentes, ambos somos mergulhadores. Conte-me sobre o seu estado de espírito na hora que precede o mergulho.

– O mergulho é paz para mim, é tranquilidade, talvez fuga. Acredito até que um determinado estado de espírito inexista nesse momento. E talvez seja este, no meu caso, o segredo e o encanto da caça submarina.

[…]

Fizemos uma pausa enquanto minha empregada trazia o café.

– Agora uma pergunta – disse Bruno. – Seu nome é, assim, o máximo para o seu temperamento artístico, é um nome que atrai, é um suspense. De onde surgiu esse nome? Há muito tempo eu queria saber disso.

Respondi:

– Meus pais eram russos, da Ucrânia, e, segundo meu pai, todas as gerações anteriores à dele tinham nascido na Ucrânia. Esse nome, com ar latino, com ar de inventado, deve ter sido como seixo rolado: através dos séculos foi se formando e deformando.”

 

Fonte: Revista Cult

 

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