Uma Quarta Qualquer

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Miguel desembarcou do trem junto com uma multidão de outros torcedores. Ele havia se acostumado ao empurra-empurra do desembarque em dias de jogos e a torcida cantando a todo vapor. Hoje, escutava alguns pequenos berros isolados e o desembarque aconteceu sem nenhum empurrão. Apesar do número baixo de torcedores, Miguel enxergava um estranho e contido otimismo nos rostos dos que haviam saído de casa naquela quarta-feira fria. A previsão era de 20 mil pessoas, um público baixo para um jogo eliminatório do seu time, mas depois de uma derrota por 3×0 fora de casa e com o futebol que eles vinham jogando ultimamente, 20 mil loucos em uma noite daquelas era quase um milagre.

Miguel também se sentia otimista, mesmo não tendo nenhuma razão para tal. Sua vó estava no hospital desde o começo da semana, seu namoro estava na UTI e a única coisa que ele detestava mais que o seu trabalho, era o chefe dele. O otimismo também parecia loucura quando ele tentou lembrar a última vez que seu time tinha feito mais de três gols e não levado nenhum e não conseguiu. Enquanto descia as rampas da estação, Miguel se perguntava o porquê havia saído de casa. Ele dizia que o time precisava dele, mas a verdade era que ele precisava do time. Durante aqueles 90 minutos mais acréscimos, talvez com pênaltis, ele esqueceria do quão tenebrosa sua semana tinha sido até ali e o quão sem rumo ele se sentia nos últimos tempos. A voz de um camelô o tirou do transe:

– Vai uma gelada aí, patrão?

 

– Oi? – Miguel tinha escutado a pergunta, mas desde pequeno ele tinha o hábito de responder uma pergunta com outra para comprar mais tempo de pensar.

 

– Brahma e Antártica gelada. Vai uma?

 

– Tá quanto, parceiro?

 

– Oito, chefia.

 

– Oito? Sou turista não, parceiro. Oito reais numa latinha, tu me quebra demais. Semana passada vocês tavam fazendo uma por seis e duas por dez.

 

– Ih, teve isso não.

 

– Vou não, parceiro. Valeu, mas fica pra próxima.

 

Miguel saiu andando, mas a voz do camelô o impediu de voltar para seus pensamentos.

 

– Beleza, faço duas por 10. Mas só porque você é fechado com o certo.

 

Miguel volta, entrega uma nota de 10 para o camelô e recebe duas latas.

 

– Falou, maninho. Boa sorte pra gente hoje! – Miguel disse enquanto equilibrava as latinhas e guardava a carteira no bolso. O camelô acenou enquanto organizava a nota de dez no meio de seu bolo de notas:

 

– Time dos caras é ruim. Vai ser tranquilo.

 

Miguel seguiu seu caminho, abriu a primeira latinha e deu a primeira golada. A cerveja estava obscenamente gelada e seu estômago vazio protestou o primeiro gole, mas sua garganta agradeceu. Ele seguiu pelo contorno do estádio até a entrada B. O entorno do estádio estava pintado timidamente com as cores do seu time. As vozes de pais com seus filhos pequenos, casais de idosos e grupos de amigos traziam uma distração agradável para os pensamentos de Miguel. Chegando no portão, Miguel precisou virar a segunda latinha antes de passar pela catraca. Seu estômago reclamou mais uma vez e o mundo inclinou levemente. Miguel detestava beber de estômago vazio, mas não havia conseguido comer direito durante o dia e precisava daquela dose de álcool para controlar a ansiedade pré-jogo. Ele entregou seu ingresso, passou pela catraca e subiu a rampa em direção ao seu lugar habitual na arquibancada.

 

Seu lugar costumeiro sempre enchia, era lá onde os torcedores mais assíduos iam. Gente que parecia depender da insanidade daquele ambiente para manter a sanidade. Miguel se sentava no mesmo lugar havia uns dois anos. Não era sempre que ele conseguia se sentar lá, isso acontecia principalmente em jogos que lotavam muito e ele demorava a entrar. Um fenômeno que invariavelmente acontece quando se senta no mesmo lugar é que aos poucos os estranhos vão se tornando rostos familiares. Sempre surgiam pessoas novas, mas outras eram figurinhas carimbadas. Um pouco abaixo dele, uma mãe com seu filho pequeno estava com sua costumeira camisa de 2008. Olhou e a uma fileira acima viu o homem bombado com a tatuagem de tubarão e sua irmã bonita. Hoje, ela estranhamente estava desacompanhada do namorado (Será que eles terminaram?). Duas fileiras abaixo dele e do lado oposto do corredor, a primeira cadeira estava vazia. Um careca na casa dos 50 anos que suava geralmente se sentava lá.

 

A bola rolou e logo veio o primeiro susto. O camisa 3 do seu time deu uma pixotada e o atacante dos caras mandou um chute que explodiu no travessão. A torcida que cantava ficou muda por um segundo, soltou um grito de alívio e voltou a cantar. Miguel olhou para baixo e viu o careca subindo. O seu lugar regular já estava ocupado então ele se sentou na primeira cadeira da fileira oposta à de Miguel. O universo parecia um lugar um pouco mais certo agora, apesar da pequena mudança. O grito da torcida tirou a atenção de Miguel do careca a tempo de ver Eduardinho, o atacante do seu time, se embolar com o zagueiro adversário e estufar as redes. O placar marcava 1×0 e agora faltavam só dois. Apesar do gol, o primeiro tempo foi bem ruim e os times brigavam mais com a bola do que pela boa.

 

O intervalo chegou e Miguel aproveitou para ver se tinha chegado alguma mensagem no celular e ver o que seus amigos falavam nos grupos. Ele havia chamado alguns para o jogo, mas nenhum deles parecia disposto a pagar ingresso para ver a provável eliminação do time. Algumas fileiras mais abaixo uma criança brincava no colo do pai e um casal de idosos tirava fotos beijando o escudo. Pais com filhos pequenos e casais de idosos no estádio eram duas coisas que faziam seu coração derreter. Miguel sempre tentava levar sua namorada aos jogos, mas ela detestava multidões.

 

O segundo tempo começou e com ele a classificação começou a parecer menos distante. Falta marcada na entrada da área, bola desviada na barreira e 2×0 no placar. Seu time pressionava mais na base da vontade do que do talento e o terceiro gol parecia amadurecer. O problema é que o primeiro gol do outro time também parecia próximo a cada contra ataque. O técnico do seu time fez substituições, mas o banco do seu time não tinha o tipo de jogador que fazia o time melhorar em campo. Miguel nutria um ódio em especial pelo camisa 14 que havia entrado. Ele nunca acertava nada em campo, mas todo jogo era colocado. Miguel suspeitava que ele tinha a evidência de algum crime cometido pelo técnico para usar de chantagem, só isso explicaria a insistência nele. Em seu primeiro lance, o camisa 14 se enrolou com a bola e deu um contra ataque perigoso para os visitantes que desperdiçaram a chance mesmo com vantagem numérica no ataque. Uma chuva de gritos veio da arquibancada, metade vaiando o camisa 14 e outra metade pedindo para não vaiar. Apesar de odiar o camisa 14, Miguel pertencia ao segundo grupo.

 

Faltando 15 minutos para acabar o jogo, o camisa 14 recebeu a bola de novo e apesar do domínio de canela, ele não perdeu a bola.

 

– Passa a bola, passa a bola. O Eduardinho tá livre, filho da puta! – a torcida gritava desesperada ao ver ele prendendo a bola.

 

O defensor rival conseguiu o desarme e gritos frustrados e xingamentos ecoaram pelo estádio. O camisa 14 não desistiu do lance e recuperou a bola. Eduardinho se desmarcou e levantou a mão na área.

 

– PASSA! PASSA! – gritava Miguel com a pouca voz que lhe restava.

 

O camisa 14 baixou a cabeça e armou o chute. A bola passou no meio de dois zagueiros e foi direto no ângulo direito do goleiro. Miguel e a torcida explodiram e o nome do camisa 14 era cantado a plenos pulmões. Miguel admitiu que apesar da falta de técnica nunca faltou vontade para o camisa 14. Seu time continuou pressionando e faltando um minuto para o fim, Eduardinho foi puxado dentro da área. Pênalti escandaloso ignorado pelo juiz que preferiu fingir cegueira. Apesar disso, o 3×0 mantinha a esperança viva, era só o time caprichar nos pênaltis.

 

Miguel olhou para o lada e o careca parecia que tinha saído de uma piscina de tanto suor que encharcava. A careca chegava a refletir as luzes do estádio e uma pessoa vaidosa poderia ver seu reflexo ali.

 

Os times já haviam definido a ordem das cobranças que aconteceriam do lado da torcida da casa. Eduardinho cobrou o primeiro pênalti e converteu. O atacante do time adversário cobrou e fez. O segundo pênalti foi desperdiçado por ambos os times enquanto o terceiro foi convertido pelo time de Miguel e desperdiçado pelos visitantes. O quarto pênalti foi novamente convertido por ambos. 3×2 e um pênalti separava o time de Miguel da classificação. O camisa 14 caminhou até a marca de cal e posicionou a bola. Deu dois passos para trás, olhou o goleiro e aguardou autorização do árbitro. O ar estava sólido de tensão, algumas pessoas rezavam, outras só estavam com as mãos juntas em posição de reza, algumas mais otimistas estavam com os celulares na mão prontos para filmar o pênalti da classificação e Miguel torcia a barra da camisa. O som do apito cortou o silêncio e o trajeto que separava o camisa 14 da bola parecia ter a distância de uma maratona. Ele chutou, mas chamar aquilo de chute era uma hipérbole. A bola foi lentamente no meio do gol e foi defendida com facilidade. O estádio estourou em xingamentos e lamentações.

 

– Como um sem sangue desses tá no time, meu deus! Esse cara tinha que sair preso. Todo jogo é essa falta de vontade – Miguel esbravejava com a pessoa ao seu lado.

 

Miguel olhou para o lado e o careca estava vermelho e tremendo. Por um segundo ele ficou preocupado com a possibilidade de o homem ter um treco ali mesmo. Miguel rezava, apesar de ter abandonado a igreja aos 15 anos. A última vez que ele havia rezado tinha sido quando a menstruação de uma namorada havia atrasado. Ele prometeu que iria na missa com sua mãe se a classificação viesse. O zagueiro do adversário partiu para a cobrança e isolou. Explosão de alegria no estádio. O homem bombado abraçava a irmã, o casal de idosos se beijava e pulava abraçado e vários pais levantavam suas crianças. Miguel olhou para o lado e viu o careca tremendo e comemorando sozinho. Ele andou até o homem e o abraçou e sentiu o corpo do homem relaxar e desabar em choro. Quem olhasse de longe veria ali um pai e seu filho e não dois estranhos. Miguel e o homem só voltariam a interagir novamente um com outro na comemoração de um título que aconteceria cinco anos depois. Nessa ocasião, seria Miguel fora de seu lugar tradicional e ambos chorariam.

 

A saída do estádio e caminhada até a estação de trem foi longa e feliz. Os fiéis presentes cantavam a plenos pulmões. Miguel comprou uma lata de cerveja por 10 reais na saída e dessa vez nem havia tentado barganhar. Os primeiros 20 minutos na plataforma do trem foram de muita comemoração. Depois os grupinhos foram se dividindo de novo e algumas pessoas se sentavam exaustas à espera do trem enquanto outras bebiam animadas conversando com seus amigos. O trem finalmente chegou e as pessoas correram para pegar lugares. A chegada do trem reacendeu o ânimo da torcida que durante metade do trajeto encheu os vagões com gritos e batucadas. Mas o cansaço do dia foi novamente inundando os corpos e quando a maioria das pessoas já haviam conseguido um lugar para se sentar, poucos gritos eram escutados e nenhuma música era cantada até o fim por mais de duas pessoas. Crianças dormiam no colo de seus pais enquanto alguns amigos relembravam lances do jogo. Outras pessoas ouviam música em seus fones de ouvido com os olhos fechados. Miguel lutava para se manter acordado com medo de perder a estação.

 

– Eu tô fudido – disse uma voz ao lado de Miguel. O dono da voz era um homem um pouco mais velho que ele brigando para se manter acordado.

 

– Cansado? – perguntou Miguel na falta de algo melhor para falar.

 

– Porra, nem fala. Tenho que acordar daqui a duas horas. Vou chegar em casa, tentar tirar um cochilo e tomar um banho pra trabalhar.

 

– Sei como é – disse Miguel dando um sorriso cansado – Tenho uma aula amanhã cedo também, mas posso dormir mais umas quatro horinhas.

 

– Nossa, tô te invejando muito agora.  Mas valeu a pena, né? A vida tá meio merda e essa vitória bem que veio a calhar.

 

Os olhos de Miguel percorreram o vagão e ele viu o mesmo alívio e cansaço que ele e o homem partilhavam estampado no rosto de cada uma das pessoas naquele trem. A vida parecia cobrar um pouco da sanidade de todo mundo, mas aquela gota de alegria em uma noite de quarta parecia um oásis. Talvez as coisas fossem dar certo dali para a frente. Amanhã iria visitar sua vó após a aula e depois iria passar a noite na casa da namorada. Mal podia esperar para contar como havia sido o jogo para ela e zoar seu sogro.

 

 

 

 

por: Yuri Szirovicza

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