O Naufrago

Estrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativa
 

Levantou a perna direita, dobrou o joelho quase à altura da cabeça e saltou. Esse salto naquele momento parecia um ato temerário não para o escuro, embora estivesse muito escuro, mas um salto para o universo azul do deslumbramento.

Foi assim que Simão Barjonas transpôs a borda do barco que se inclinou com risco e pisou, firmemente, o lago Tiberíades.

– Sempre foi impetuoso! Mas como é que ele vai conseguir? – perguntou Tomé ao colega do lado.

– Vai, porque o Mestre está a dizer-lhe – atalhou J. Boanerges, enquanto uma vaga mais alta lhe fez descer e subir a voz.

Aquelas águas que o vento confundia com pequenos montes de terra acastanhada que se erguiam e caíam, tiveram sempre grande significado para ele.

Nunca havia pensado nisso, senão reduzidamente, que o seu pai Jonas, a sua família nasceram fadados para explorarem as águas do lago, que os do sul chamavam mar da Galileia, cujos produtos eram consumidos por toda a Palestina. Pertencia à classe dos pescadores que integrava a classe geram dos pobres, remediados pelo seu próprio labor como os artesãos. Pior estava quem dependia da terra que, por norma, era sempre a terra pertencente às grandes famílias. Comia peixe, pão de trigo, lentilhas e favas. Nunca pensara nisso com apego; naquela altura em que levantara o corpo para pisar as águas compactas do lago, menos pensava. Estava decidido.

– Senhor, se realmente és tu, manda-me ir ter contigo caminhando sobre a água – gritou Pedro de longe.

Eram às quatro da manhã; a túnica inquieta do Mestre recebia agora uma ligeira claridade que acentuava o vento, o qual estava a levantar-se dos lados de Hermon, por isso a túnica parecia uma bandeira inquieta sobre as águas. Mas não viu nenhumas vestes a esvoaçarem, nem pensou em bandeira alguma. Os seus olhos afeitos à pesca noturna, às imprecisões da madrugada, não se tiravam do corpo que parecia correr sobre as águas, com passadas estendidas sobre o lago. A palavra do Mestre ressoava sobre o marulho das ondas como ressoava nos seus ouvidos.

– Vem! – correspondeu o divino Mestre.

Simão Barjonas, devido a ser um homem voluntarioso, funcionava muito bem sob comando.

O vento atravessava o lago, torrencialmente. Devido ao seu leito, com uma profundidade média de 20 metros, estar cavado no vale do Jordão, cercado de colinas, era propenso à criação de diferenças de pressão atmosférica e de pés-de-vento, curtos, mas rigorosos.

Mesmo assim, naquele dealbar da noite, Simão Barjonas entrou na torrente do vento e pisou firme as águas. Caminhar sobre o lago de Tiberíades, jamais fora para ele uma aspiração daquelas que às vezes se tem desde criança. Caminhar por cima das águas seria como andar sobre uma esfera à procura do centro; era assim que se sentia, naquele momento especial. O vento frio atirava fortes bátegas mornas de água à cara de Simão Barjonas. Atrás ficara o barco e o espanto nos olhos dos companheiros; os seus corpos embalados pelo balanço quase perigoso do barco, por breves instantes, não estavam em pânico.

O rosto de Simão Barjonas, porém, começou a fechar-se como o temporal. Começou a água a fugir-lhe debaixo dos pés; deixara, naturalmente, as sandálias no barco. Os dois pés pareciam agora perdidos sob as águas. Vieram e tornaram a vir à superfície. Simão Barjonas era cedro do Líbano, seco e espesso; o seu cerne fá-lo-ia afundar-se mais depressa. A voz do Mestre flutuava-lhe nos ouvidos – Vem! – e fora a força do milagre, essa voz inteira, acima da terra, do mar, dos céus, estava a ser substituída, paulatinamente, pelo vento e pelo marulhar das águas do Tiberíades. Só agora Simão parecia compenetrar-se que estava a dar passos inseguros sobre o mar.

Aquilo era como estar a sonhar acordado. Havia redes com enormes buracos prenhes de peixes; peixes com coroas de louro, quais vencedores romanos, à volta de cabeças com escamas; barcos a navegar pelas costas de pescadores com narizes aduncos e compridos; asas de mil e uma cores de borboletas a tomarem o lugar das velas dos barcos; estes pontilhavam e cobriam com suas formas o lago a que os gentios chamavam Yam Kineret.

A forma de harpa que o lago tinha soava-lhe, musicalmente, aos ouvidos; via a sogra a arder em febre e as bagas de suor da sua testa a molharem as mãos de Jesus; a cabeça cortada de João Baptista dava uma dimensão trágica às águas do lago, o sangue cobria o acastanhado das águas, e Simão Barjonas queria apanhar a cabeça do Baptista que lhe escapava entre os dedos e ondulava nas vagas que se erguiam sob os pés, como um meteorito enorme no cosmos; os milhares de pedaços de pão que saltavam dos cestos, caíam nas águas e regressavam de novo aos cestos...

Quando o divino Mestre lhe deitou a mão e o fez subir para o barco, olhou pela primeira vez para as estrelas, ao voltarem a aparecer. Mediu-lhes a altura, sacudiu a água da túnica enrolada no baixo-ventre como um calção e sentou-se. Passou as mãos calejadas pelos olhos. Queria ver o corpo do Mestre por inteiro; na arca do peito o seu coração estava em repouso.


J. T. Parreira

 

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