Recreio

Estrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativaEstrela inativa
 


Estava velha, afinal já completara 70 anos e agora dera para lembrar de coisas antigas, fatos, pessoas, acontecimentos, mas, principalmente, da escola! Começara uma volta ao passado. Lembrava da criança magrinha de cabelos ralos quase careca motivo de chacota dos colegas. Parecia até desnutrida; sendo órfã de pai e mãe não tinha lugar certo para morar; e para garantir a sobrevivência era sempre mandada para a casa de algum parente, a fim de ajudá-los nos afazeres domésticos. O mundo lhe era cruel, por isso era tão arredia…!

Gostava de ler. Aprendeu muito cedo, vendo e ouvindo sua irmã mais velha ensinar outras crianças para manter a família. E como era muito inquieta e teimosa, a irmã que, de certa forma era responsável por ela, punha-lhe um livro nas mãos. No começo só olhava as letras, mas depois… Muito depois percebeu que ali estava um grande segredo…!

Quando entrou na escola aos sete anos, como faziam as crianças naquela época, principalmente as pobres, já sabia ler. Causou espanto quando a professora foi explicar as letras e ela já sabia as palavras. Quando foi ensinar os números já fazia as quatro operações… Mas isso ia lhe custar muito caro… E, como ia!

A escola era um Grupo Escolar Rural. Numa mesma sala ficavam crianças de várias idades e níveis diferentes de escolaridade e classe social. A professora tinha, então, que dar conta de todas…!

Apesar de pobre, não era miserável. Havia outras mais pobres ainda. E, das que moravam na área rural, umas tinham pais fazendeiros. Chegavam montadas em seus cavalos com arrogância e prepotência!

Morava no fim da rua do lado oposto ao da escola. Ah, sim! É preciso esclarecer, o vilarejo tinha uma única rua, considerada muito, mas muito comprida, quase sem fim. Principalmente porque era preciso atravessá-la toda e fazer uma grande caminhada para chegar à escola que ficava num lugar alto e de onde se descortinava um grande horizonte. Via-se praticamente toda a vila e os seus arredores.

Gostava de chegar cedo, bem antes das aulas começarem. Ficava em pé no grande terraço que circundava a escola, para ver tudo ao redor, até onde a vista alcançasse… Até o infinito!

Via quando as outras crianças chegavam. Ficava olhando. Algumas bem arrumadas, sempre de roupas domingueiras ou mesmo de festa. Naquela época, as roupas tinham datas…! Verificava que algumas vinham sempre com as mesmas roupas, era o caso dela. Às vezes usavam sapatos ou sandálias compradas na feira ou até tamanco de madeira… Mas, tanto ela quanto o irmão – um pouco mais velho –, apenas onze meses, não tinham sapatos, apenas uma sandália cada, ou como se chamava antigamente, alpercata, que pelo uso era velha, gasta. A situação ficava pior quando a tira partia…! Quebrava-se! Como os dois tinham quase o mesmo tamanho do pé, e não podiam ir às aulas descalços, a solução era dividir o mesmo par. Usavam uma estratégia: cada um deles amarrava uma tira de pano em um dos dedos ou mesmo ao redor do pé, para dizer que estava doente, ferido…, portanto, não podia calçar. E assim, não precisavam faltar à aula.

As crianças, com o tempo, acabaram compreendendo que não havia pé ou dedo doente, apenas uma forma de esconder que só tinham um par de alpercatas. Passaram, então, a debochar quando passavam ou quando entravam na sala. Mas, pouco importava, o que queriam mesmo era assistir aula…!

Um dia algo muito desagradável aconteceu… nunca tinha enfrentado uma situação daquela! Precisava ficar quieta para não chamar atenção. Até seu irmão ficou sem compreender o comportamento dela. Imaginou que talvez ela tivesse aprontado alguma coisa, como era do seu feitio e, por isso, estava na expectativa de ser descoberta.

Chegou cedo, como sempre. Esquivando-se de qualquer contato, ficou pelos cantos calada e bem quieta…! Esperava que ninguém a notasse.
Na verdade, carregava um segredo que ninguém, mas ninguém mesmo, deveria saber nem mesmo seu irmão!

Assistir a aula foi um tormento, não quis ler o livro de história que, naquele dia da semana, quarta-feira, sempre lia. Quando a professora mandou que todos abrissem o livro, não o fez. Seu irmão que sentava junto, porque a carteira era de dupla, abriu e se espantou quando ela permaneceu calada e não fez menção de querer ler alto, porque teria que ficar em pé para que todos vissem e ouvissem. Sabia fazer isso muito bem!

Continuou impassível, quieta e triste… E assim permaneceu! A professora olhou-a e perguntou quem queria fazer a leitura. A leitura daquele dia falava da história da raposa e da uva…!

Finalmente, hora do recreio…! Estava assustada e com medo de alguém descobrir o seu segredo… Normalmente, era primeira a correr, sair da sala, nesse dia decidiu esperar. Todos saíram e ao chegar ao pátio ficou quieta num canto para não chamar atenção.

As crianças se organizaram para brincar! Os meninos de pega, de correr, de bola, e as meninas de jogar pedrinhas; nessa brincadeira sempre ganhava. Nesse jogo se usa cinco pedrinhas do mesmo tamanho e, gradativamente, joga-se para o alto uma a uma e vai apanhando a que fica em baixo, até chegarem as cinco; brincadeira na qual era imbatível. Naquele dia estava sem vontade, mas se fossem brincar desse jogo até que participaria, mas não foi o caso.

A brincadeira foi a de pular corda, na qual também era especialista. Aliás, só brincava de corda se fosse de “foguinho”, quando a corda tinha que ser movimentada em alta velocidade, o mais rápido que pudesse rodar! Até os meninos participavam, porque tinham mais força e rodavam a corda com mais velocidade. As duplas foram organizadas.

A menina que vinha da fazenda e era “rica”, tinha trazido uma corda nova e grossa; boa mesmo de ser usada. Ela continuava arredia e silenciosa no seu canto, aumentando, assim, a expectativa. Todos esperando que ela entrasse na fila para pular. Mas, quieta estava e assim permaneceu, para espanto de todos!

A dona da corda ficou frustrada e não se conformou com a negativa. Queria mostrar que com aquela corda era possível alcançar uma grande velocidade, que ninguém seria capaz de acompanhar, nem mesmo ela. Não se conformou com a indiferença… Mas não se mexeu… Continuou bem quieta no seu lugar e nem se incomodou com o chamado das outras, nem sequer respondia. Não podia fazer nada…! Tinha que permanecer quieta…, bem quieta…!

Todos começaram a gritar: Vem! Vem! Vem pular, tá com medo! Ela simplesmente balançava a cabeça negativamente.

Foi, então, que a menina da corda, aliás, tinha o mesmo nome dela e era bem mais velha, sentiu que naquele momento podiam mangar dela. Não se conformava com o fato dela ser mais jovem e já saber ler, escrever e fazer contas muito melhor do que todos na sala. Viu, então, a oportunidade de uma desforra, então disse: Ahhhh! Ela está com medo, porque a corda é nova e grossa.

Nada respondeu, olhou-a, simplesmente. Olhou-a com desprezo e virou o rosto…! As colegas começaram a gritar: medrosa! Tá com medo, tá com medo!

Começou aí uma grande barulheira! Até os meninos vieram ver o que estava acontecendo! Todas as crianças em um só coro gritavam o nome dela e diziam: está com medo! Está com medo! Amarelou…!
Num ímpeto levantou-se e todos acompanharam o que ia fazer. Disse: pode rodar! A menina da corda começou a rodar…!

No começo lento, mas a cada instante aumentava a velocidade… E, gradativamente, ia aumentando mais e mais a velocidade…! Mas, não se intimidava… Sabia que era rápida e que aguentaria qualquer que fosse a velocidade. Pulava, pulava, pulava e nesse movimento um sentimento de força e poder foi tomando conta do seu corpo! Mas… Eis que de repente… Algo horrível aconteceu!

A corda parou bruscamente entre suas pernas! E, num gesto rápido, a menina esticou-a e ergue-a ao máximo, fazendo com que a saia fosse levantada e exibisse a calcinha… que estava rasgada! Ficou estarrecida e em pânico…! Impotente e envergonhada de sua pobreza e principalmente por ter sido descoberto o seu segredo, sentiu-se exposta e nua! Desamparada e humilhada diante de todas as crianças, até mesmo do próprio irmão que nada sabia! Todos… Todos em uníssono caíram na gargalhada! Apontando na sua direção aos gritos dizendo: calcinha rasgada…! Calcinha rasgada! Ah! Ah! Ah! Era assustador!

Estava paralisada. Seu segredo havia sido descoberto… Sua calcinha rasgada estava agora exposta…! Todos viram que ficou ruborizada e indignada. Era uma gargalhada só, em coro todas as crianças ficaram mangando dela e gritando: calcinha rasgada! E repetiam calcinha rasgada!!! Ahhhhhh!!!

Meu Deus, quanta vergonha! Sentiu-se ferida na sua dignidade. Mesmo envergonhada sentiu que precisava fazer algo. Foi, então, que de suas entranhas surgiu uma força irreversível, algo forte que a fez estremecer, uma onda de rancor e desprezo a invadiu… E, repentinamente, com suas mãos trêmulas avançou para a menina e de um só golpe rasgou sua blusa, deixando expostos os seios grandes e redondos!

Foi um grito só: Ohhhhhhhhhhhh! A menina largou a corda e estupefata embrulhou-se com os próprios braços e saiu correndo para junto da professora que, horrorizada, a abraçou e entrou na sala.

Ninguém mais se preocupou com ela, estavam agora curiosos para saber o que ia acontecer!

Ficou quieta esperando… A professora chamou-a asperamente. Pediu para que todas as crianças entrassem na sala e se acomodassem em seus lugares! Amparada pela professora e embrulhada na bandeira do Brasil, estava a menina com ar de triunfo! Recebeu ordem para que ficasse de pé e na frente de todos… Começou a dizer coisas que até hoje se nega a lembrar…! Todos aplaudiram menos seu irmão. E disse em voz alta que ela ficaria uma semana de suspensão. Estava mandando um comunicado pelo irmão para que em casa fossem tomadas as devidas providências. Assegurou a todos que ela seria devidamente punida…!

E assim foi! Ela calada estava, calada permaneceu, mas no íntimo estava muito satisfeita com o que fizera… Afinal, resgatara a sua dignidade! Ninguém se lembrava de sua calcinha rasgada, não se ouviu o menor comentário…! Mas também não houve a menor solidariedade! Ah, que bom! Que alívio, não precisava mais ter vergonha!
Voltou para casa antes do fim da aula. Com o irmão, a notificação da sentença decretada na escola e a exigência de medidas. E foi o que aconteceu…! Levou uma grande surra que a deixou recolhida, isolada em casa sem ver ninguém por mais de três dias, com seu corpo franzino todo marcado! Para ela tudo estava bem, afinal, tinha feito com que ninguém lembrasse da sua vergonha…! O isolamento não a expunha a humilhação…!

Estavam no fim do semestre. Nunca mais viu a menina. Nunca mais as outras crianças brincaram ou falaram com ela. Era como se não existisse. Sentia-se feliz assim, invisível…! Não tinha a menor importância! Aproveitava o recreio para, sentada num canto, pensar, sonhar que um dia tudo seria diferente e, sobretudo, para ler… E como gostava!

 

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